quarta-feira, julho 08, 2009

O Monstro



Ele seguia cambaleando pela avenida. Cada passo era como uma vitória. O vento frio do outono lambia sua pele suja e ressecada levando consigo o aroma de sua precária higiene. Um casal cruza a rua e evita seu olhar – sou um monstro – pensou. Estava acostumado ao desprezo da sociedade, visto como um pária, aquele que “sobra”. O por do sol tinge de dourado os prédios encardidos e as ruas fétidas. Procura um lugar para sentar, a bebedeira está passando, está conseguindo pensar novamente. Ele odeia ter de pensar, cada vez que reflete sobre sua vida sente um vazio enorme, lembra-se de que é um monstro. Para em frente a um velho cinema abandonado. Outros monstros estão na porta cabisbaixos. Um deles cobre-se com uma folha de jornal. Há algo escrito, porém como não sabe ler vê a figura. Um casal sorridente segura um cartão dourado na mão. – estes são gente afinal. Senta-se ao lado do outro que nem se mexe. Olha para rua, vazia afinal. Uma lufada de ar levanta os papeis jogados que dançam a melodia que vem do assovio gerado pelo vento que se espreme pelas frestas e cantos da cidade. O Sol dá seu último suspiro e se esconde por de trás da igreja matriz. Seus olhos cansados começam a querer se fechar, porém o ronco de seu estomago vazio os acorda. Com muito esforço levanta até a lixeira, a bebedeira está no fim sente enfim a fome. Remexe com cuidado, entre os dejetos acha um pote de iogurte. Enfia o dedo na garrafinha e retira uma generosa porção. Leva a boca, não mata sua fome, mas lhe concede uma breve sensação de prazer. Após sorver até o último suspiro do laticínio joga a embalagem no meio fio e vira-se em direção ao banco da praça. A cada passada aumenta o peso em suas costas, sente sua cabeça pesar pressionando suas vértebras, parece que seu pescoço não suportará a pressão. Apóia a mão direita no banco e vira-se, ao sentar sente um formigamento refrescante, como se seus músculos estivessem comemorando o momento em que podem enfim relaxar. Lentamente vai se permitindo deitar esticando seus membros sujos e podres pelo banco da praça. O vento gelado da noite lhe abraça como um castigo do carrasco. Sua pele reage ao contato e arrepia-se, tentando inutilmente afastar o cobertor gelado da noite. O monstro está cansado demais para levantar-se e procurar algo. Pelo menos o frio lhe disfarça a fome. – Meu Deus!!!!! Estou gelado!!!! – . Oh! Pobre monstro! Que espécie de Deus tu clamas? O mesmo que se revelastes a Abraão? Aquele era a imagem e semelhança do homem e não de ti, pobre asquerosa criatura. Para ti não há Deus, há somente a conformidade de tua existência. O sono custa a chegar. Abraçando o próprio corpo o monstro luta contra o frio e finalmente dorme. Um sono sem sonhos, mas sem dor. E é sem dor quando quatro garotos humanos se aproximam e numa brincadeira inocente jogam-lhe álcool e tacam-lhe fogo. O monstro nem se mexeu enquanto era consumido pelas chamas, talvez já estivesse morto antes de seu corpo arder. Os quatro garotos voltaram felizes para casa. Tinham matado o monstro, agora o mundo está mais humano.

imagem: Las Manos Del Mendigo. de Oswaldo Guayasamín

3 comentários:

M!la Oliveira disse...

Uau..sinistro!
Meu..brincadeira inocente tacar fogo numa pessoa !
queriam aliviar o frio do pobre eu creio..mas me diga quem agora é o monstro?

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

É engraçado como alguns preferem enxergar erro na cultura alheia, porém, não na própria. Ver a cultura indiana como linda por um lado, mas horrorosa e maléfica por outro, é o que vem "mostrando", recentemente, a nossa querida e bondosa emissora brasileira, em uma de suas novelas fantásticas. Nesta novela é vista as castas e o cotidiano indiano. Assim, encontramos personagens da casta dos dalits(os impuros)que vivem em péssimas condições e são considerados como seres "despresíveis" e que ninguém pode casar-se com um dalits se não for um deles, além de serem "abandonados" pelas pessoas de castas mais elevadas. Agora, por que criticar do descaso com os dalits? Já que aqui no Brasil estamos cercados de "monstros- dalits" nas periferias e centros urbanos? Será que o vírus da cegueira já contaminou todos? Ou foi a brincadeira dos garotos humanos, o fogo, que atrapalhou a identificação dos nossos dalits?