Eram três da manhã quando olhou para o relógio. A testa estava molhada e sentia um frio umido em seu colchão, havia suado frio novamente. Levantou e foi até a cozinha. Sua cabeça pesava nos ombros, parecia que seu cérebro iria romper a sua caixa craniana e, numa explosão cinematográfica, tingir a sala com seus miolos. As mãos estavam inchadas e o pé se arrastava pelo frio azulejo da cozinha. O bebedor de barro ostentava-se como um troféu ao canto, do lado da pia. O relógio da sala gritava, ou melhor urrava tic tacs alucinantes, sua cabeça doia ainda mais, sentia a garganta seca e os olhos arderem. Finalmente consegue o copo com água, mas está tão pesado e dificil de ser erguido à boca. Em goles inclementes e refrescantes acalmou seu organismo sedento. Sorvia a água e a sentia percorrer seus poros, repondo seu gasto noturno. A cabeça doia menos quando foi para a sala – onde diabos está o controle ? – Baixou a cabeça para procura-lo em baixo do sofá... ah antes não tivesse feito isso... Franziu a testa. Uma dor lacinante perfurou suas temporas, expremendo sua mente. A cabeça estava pesada e seus joelhos dobrados não conseguiam obedecer sua vontade de levantar. A mão direita agarrava-se com força no couro velho e rachado do sofá e os dedos cravavam na espuma exposta. Com muita dificuldade finalmente levantou – droga! Preciso de um analgésico! – Caminhando com os braços erguidos e tateando o caminho como um zumbi dos filmes de Romero, alcançou o banheiro. A dor lascinante obrigava-o a manter os olhos semifechados. Seu rosto enrruga-se com a dor. Na testa, suas linhas de expressão formavam vales e colinas que brilhavam com o suor de seu rosto. Com sua mão tateando, finalmente consegue abrir o espelho, mas devido à violência de seu ato e da falta de organização no armário, duzias de caixas de remédios escorrem pelas prateleiras como a água represada de um rio. – Porra!! Nada dá certo comigo! – Um frasco de comprido se abre com a queda e a única pilula escapa e circula as paredes da pia. – Droga! Este aqui não – Sua mão procura desesperadamente segurar a pedrinha milagrosa, mas devido a sua falta de concentração graças a sua febre, deixa a cair no ralo. – Porra! E agora? – Com as mãos fechadas apoiadas na pia, tal como um lutador de boxe concentrado, tenta desesperadamente achar uma saída no labirinto congestionado de sua mente. O telefone toca. Suas palpebras apertam ainda mais, formando rugas nos cantos dos olhos. O telefone toca. Aperta fortemente suas mãos ao ponto de suas unhas marcarem a carne macia da superficie da palma. O telefone toca. Abre os olhos de forma ríspida, deixando-os exageradamente arregalados e olha para cima como se tivesse rompido a lâmina de água e desperto de um afogamento. O telefone toca.- Não vou atender – O telefone toca. – Que merda! Quem é o filho da puta sem noção? – O telefone toca. ... ... ... ... ... ... finalmente silèncio. Volta vagorosamente para sala, os pés pesados arrastam-se, deita-se no sofá, olha em volta e lembra-se de que não achara o controle. Aproxima-se da tv e liga. Um pastor evangélico salta à tela.
- Quem é aquele que salva! – grita à multidão de ovelhas hipnotizadas.
- Jesus! Jesus! – responde o séquito.
-Não há dor e nem sofrimento para aquele que acredita em nosso Senhor Jesus Cristo!
- Glória! Que assim seja!
- Grande coisa! – muda o canal. Agora a imagem de uma mão de unhas bem feitas aparece na tela do aparelho. – Mas que merda é essa?
- Este lindo anel de topázio pode ser seu por apenas quinze vezes de 800 reais. Mas ligue agora, é a última peça!
Aperta novamente o botão e ... outro canal evangélico. – Putz! Deixem espaço para os adoradores de satã. Como vai se lutar contra o inimigo se ele deixar de existir? Se o diabo morrer, quem precisará de Deus? – Desliga a televisão. O silêncio refrescante ecoa em sua mente. Não é engraçado como o silêncio possui som? Por vezes o silêncio possui um som tão alto que imaginamos que nenhum outro som vai conseguir suplanta-lo. Nosso cérebro é escravo do meio. Os sons entram sem permissão, assim como a dor. Não há como evita-la. Podemos controlar parcialmente seus efeitos, mas somente depois de ter chegado. Ela chega sem avisar e abre a porta e se instala. Nos nega até nossa vontade de viver. Talvez ela queira nos dizer que não somos eternos. Que estamos a todo momento sucubindo as intepéries da vida. Talvez seja a maneira de nosso corpo dizer adeus aos poucos, como se cada neurônio gritasse para os outros sua despedida. Nossa pele resseca, como se sugada pelo vácuo da vida, esvaindo de nosso interior, como uma bexiga que esvazia perdendo o ar que a sustentava.Mas na hora que o último resto de dor se for, na hora que último neuronio sair e apagar a luz... a dor se vai. Que droga, preciso atender o telefone.